No calendário festivo de Umbanda, tradicionalmente celebramos Nanã Boruquê no dia 26 de julho, dia de Nossa Senhora de Santana e de São Joaquim, os avós de Jesus.
Assim como em datas festivas prévias, não vamos nos ater aos mitos e origens do orisà em questão, pois isso temos aos montes na internet. Mas, sim, trazer à luz dos adeptos de Umbanda de nossa comunidade as questões que nos cabem, das linhas, falanges, encantados e entidades (os quais atualmente chamamos “orixás”) – seja traçando paralelos com as mitologias e cosmologias africanas ou indígenas, seja localizando nossas práticas no amálgama de ritos, crenças, liturgias e religiosidades da cultura brasileira.
Eis o sincretismo, articulado de forma sempre tão brilhante pelos nossos antepassados: Senhora de Santana, avó de Jesus, mãe de Maria. A Virgem Maria, em seu arquétipo de mãe das mães, que também é filha da mãe das mães – guarda em sua imanência toda a capacidade divina do amor materno, que não apenas gera, mas nutre a vida.
Maria, por ser a mãe das mães, também é mãe de Santana. Essa é uma característica de fluidez entre cosmogonias e atributos divinos que data desde o Egito Antigo. E algo que vemos a Umbanda operar, através de sua forma de consubstanciar os mesmos atributos em diferentes entes, ou os mesmos entes em diferentes atributos.
Explicando melhor: Nanã, mãe de Iemanjá, também é sua filha, pois Iemanjá acolhe todos os seres em seus mitos, e os nutre e os cria para viver no mundo. Nanã é anterior a Iemanjá, e ao mesmo tempo é posterior. Iemanjá cria e nutre os seres em suas águas, mas, sem Nanã, não haveria Calunga, pois antes do mar primordial, vem o vapor primordial, do planeta Terra, em sua formação.
Vejamos como os povos da Antiguidade possuíam um conhecimento intuitivo da criação do Universo: a explosão que chamamos Big Bang foi descrita em muitas mitologias como o impulso criador da pré-existência, seja pela associação à uma divindade ejaculando o universo, ou o cuspindo (Egito novamente), etc. Não à toa, a água é um elemento extremamente sacralizado em todas as culturas antigas, e aqui damos um enfoque nas cosmogonias indígenas e negro-africanas.
Tal explosão foi seguida de um primeiro vapor, que posteriormente gerou a atmosfera e os oceanos. O vapor d’água: eis Nanã. A força primordial, que une a água à terra, e gera a vida. Esta é a lama. Este é o barro que moldou o ser humano e todos os demais seres que habitam este mundo.
Nanã deu o barro, e ela o reivindica, quando o ser morre. Em uma das cosmogonias Guarani, Ñande Jari, a grande avó, participa da criação do ser humano, junto ao Grande avô, criador de si mesmo e de tudo que há. Juntos, eles criam o primeiro par de seres, que são Pai e Mãe de todos na Terra – assim como Obatalá, o criador, vai em auxílio de Nanã para a criação do ser humano, com o barro, a lama primordial.
Nanã não se trata de uma individualidade, mas várias divindades e manifestações presentes em regiões diferentes na África negra: é divindade, é orisà, é vodun. Mas é também um misto de atributos que foi absorvido pelas massas em diáspora no Brasil e, como todos os outros orixás que conhecemos hoje em Umbanda, carrega traços de nagô e de bantu. Logo, dentre tantos epítetos, Nanã é também Gangazumba, é nkise. E, como tal, não se trata apenas de força divina, mas de uma força ancestre, que rege nossa ancestralidade, nossa criação, ligação com o plano dos mortos (a dita mediunidade), clareza mental e conhecimento (aqui sincretizado no pergaminho de Santana).
Nas cosmologias africanas e indígenas, a ancestralidade rege o ser humano e guia a coletividade. Todo ancestral é antepassado, mas nem todo antepassado é ancestral. Por isso a necessidade de culto aos antepassados. Nanã rege essa linha, esse fio condutor que nos liga aos nossos antepassados que, por sua vez, nos liga aos nossos ancestrais que, por sua vez, nos ligam às potências criadoras do universo.
Nanã rege a morte, portanto, rege a vida. Sabemos que a noção de morte em nossa cultura ocidental equivale à destruição. A morte nos reduz ao nada, e o aporte religioso dominante não nos tranquiliza. Apesar de as culturas negro-africanas e ameríndias lidarem com o sobrenatural de forma naturalizada (no sentido de cultuarem seus mortos e todas as suas cosmologias), também nestas culturas a morte não é desejada.
Em ambas, a morte equivale à interrupção da vida, mesmo que o ser continue sendo um ser inteligente no pós-morte, desprovido de matéria orgânica. As mortes desejadas são as de velhice. E, mesmo essas, são lamentadas, choradas. As carpideiras existem em praticamente todas as culturas.
E por essa razão, divindades como Omolu, Xapanã e Nanã são extremamente temidas e respeitadas. O silêncio e a discrição fazem parte dos respeitos que prestamos a estas forças indomáveis.
Toda essa complexidade de Nanã em Umbanda é expressa nos pontos cantados. Os antigos, todos, fazem menção de Nanã nas águas e no fundo do mar, cachoeiras, rios, marolas, sincretizando com toda a linha d’água, Iemanjá e Oxum. Porque, enquanto água primordial, ela habita em todos os mananciais, gerando a vida. E, enquanto terra, ela está presente nos poços, pântanos, lagos e lodos, recolhendo a vida em seu útero.
Em Umbanda, especialmente em nossa linhagem, Nanã se manifesta quando o médium traz questões de ancestralidade desequilibradas, mediunidade em descontrole, ao passo que também evidencia incríveis capacidades mediúnicas.
“Senhora Santana, quando andou pelos montes
Por onde passava, deixava uma fonte
Os anjos que vinham beber água dela
Que água tão limpa, senhora tão bela!”
“Nanã é uma pedra bem velha, que mora no fundo do mar
Saravá Nanã, na beira do rio e nas ondas do mar!”
SALUBA NANÃ!
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Pontos tradicionais de Nanã:
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Autoria de Aline Camargo
Dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Risca Fogo
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