Entenda-se, por macumba, todos os segmentos mágico-religiosos brasileiros: pajelanças, feitiçarias populares, Umbanda, Candomblé e suas nações, Jurema, Tambor de Mina, Catimbó, etc.
Do advento das ciências modernas resultou a ruptura das cosmologias ocidentais. O homem rompe com sua posição de integrante de seu meio, e passa a se portar como um observador do mundo, apartando-se da Natureza enquanto o todo que o contempla.
Este homem, que observa o mundo como se não pertencesse a ele, torna-se distante e apartado de seu meio. E é no vácuo criado nesta ruptura que o capitalismo ganha terreno para desenvolver-se. A natureza, antes parte de si mesmo, (enquanto o homem parte dela), deixa de ser o Cosmos, o todo, e passa a ser meio passível de apropriação em função do homem (que substitui o todo da Natureza pelo todo dos saberes científicos).
O desencantamento do mundo weberiano constata esta ruptura. O advento das ciências modernas desencadeou uma cisão no mundo, que sempre foi um só, este, em todas as culturas. A dicotomia firmou-se com um mundo objetivo, racional e passível de comprovação de uma verdade, através da ciência moderna; e o mundo subjetivo, metafísico e sobrenatural – cuja impossibilidade de submeter-se a crivos científicos o colocou em uma subcategoria de mundo: o mundo fantasioso, de inverdades e ilusões.
Assim nasce a religião ocidental. O conceito de religião só nasce à medida que o conceito de ciência surge. Sem a ciência, não existe religião, existe apenas… o mundo, o cosmos. O exercício do ser, o que é, foi e será.
O vácuo criado por esta cisão nos causou angústia. Nossa civilização vive em busca de respostas objetivas. Vive em busca de “verdades”. Os saberes foram não apenas secularizados, mas sectarizados, divididos, apartados entre si e o próprio mundo. A ciência matou Deus. E o Deus morto, de Nietzsche, apodrece cada dia mais na sepultura do ocidente, à medida em que avança o capitalismo.
As manifestações mágico-religiosas brasileiras têm algo em comum: suas raízes são tribais, e preservam em si, mesmo que minimamente, traços de culturas que passaram incólumes a este desencantamento. Culturas que preservam um olhar “encantado” sobre o mundo, construídas através do poder de seus mitos.
Nestas culturas, o mito não é racionalizável, o mito é a natureza em si. O mito é a verdade e existe, de fato, no constructo mental que compõe estas coletividades, em suas heranças atávicas.
Aonde eu quero chegar? Na questão do conhecimento intelectual versus conhecimento popular, que permeia nossa relação com a macumba brasileira. Tais macumbas trazem em si um reflexo desta ambiguidade de nossa civilização, já que as manifestações religiosas são construções sociais. Logo, vivemos todos em uma permanente angústia de reconciliação com nossas memórias atávicas e conciliação com nossa visão de mundo – fragmentada e conduzida pelos ditames da verdade científica.
O anacronismo gerado por essa ambivalência (forçada a reintegrar-se, como forma de amenizar a angústia existencial niilista) deu espaço a movimentos como os de Allan Kardec, na França, no auge do positivismo científico, no século XIX. E esta movimentação de reciclar religiões mediante uma prévia lavagem científica ainda existe e continua a replicar-se neste vácuo, até hoje, fazendo uso, inclusive, de velhas ferramentas de dominação racial.
Deste cenário todo, o que é possível relatar em relação às práticas de macumbaria brasileira: a geração anterior ao século XX difundiu vivências com conhecimentos reproduzidos oralmente, não sistematizados. Uma forma de prática que resultou em grandes movimentações sincréticas, lançando as bases de sistematizações (culminando em uma elevação ao patamar religioso, como Umbanda, Candomblé e etc).
No entanto, esta geração também provou o azedume destes frutos desorganizados e não documentados: esta vivência não intelectualizada (do fazer sem saber por quê se fazer) alimentou a angústia pela busca da verdade, da ciência que legitima a religião.
O resultado, em termos práticos: temos, de um lado, uma geração pré-século XXI marcada pelo não apreender intelectualmente as bases fundamentais de sua religião. E, por outro lado, uma geração pós século XX marcada pela busca desenfreada por respostas lógicas, teorias prontas, mitos racionalizados – a perversão da própria ciência em pseudociências, como forma de legitimar a não-ciência.
Tudo isto somado ao movimento de urbanização, avanço de tecnologias e do próprio capitalismo, a comercialização de crenças, a monetização de segmentos religiosos em formatos de cursos, produtos e serviõs, e aumento da escolarização. Aí temos a busca pelo conhecimento acadêmico no meio religioso.
Isso posto, chegamos ao momento presente, em que o que se pesa na balança de um adepto é a quantidade de conhecimento formal acumulado por um líder religioso, e não suas capacidades subjetivas, suas conexões ancestrais e habilidades atávicas: importa a oratória, a resposta pronta, o domínio de todos os conhecimentos formais correlatos e das mídias sociais.
Coloca-se em categoria secundária o saber não formal, não sistematizado, não alinhado às tecnologias modernas e não racionalizável. Contudo, abandona-se o primordial em termos de macumbaria brasileira: a própria macumba.
O conhecimento formal reforça ou desencoraja a macumba, a depender de como se relaciona o objeto mítico à realidade objetiva do mundo. É inegável que tais religiosidades sejam autônomas a esta forma de conhecimento, ao passo que não existe macumba sem a própria macumba, que é justamente a habilidade atávica, não racionalizável.
Importa correlacionar estes saberes ancestrais com os saberes modernos? Sim, desde que não se tornem condicionais uns aos outros. Um mito como explicação de fundamento para um preceito religioso não basta, hoje em dia, para muitos adeptos. Mas não basta porque não se compreende justamente o poder do mito nestas sociedades com as quais tentamos nos reconectar em nossas práticas de macumba.
É preciso instrumentalizar estes saberes formais em prol dos informais, e não apagar os saberes informais em detrimento do conhecimento acadêmico.
C.C.T Aline Camargo