Antes, uma breve introdução:
Somos uma sociedade que exclui as crianças. Somos educados, em nossa cultura, a superar a criança que fomos, enquanto ainda éramos crianças. Crescemos em negação a ela, e o resultado não poderia ser pior: agimos com violência, omissão, descaso e, no melhor dos cenários, com a exclusão da criança do mundo em que vivemos.
A criança é parte do todo, porque ela é parte de nós, adultos. O adulto de hoje é a criança que ontem vivenciou os traumas, os medos, as alegrias, as inseguranças, os sonhos.
Ninguém é obrigado a “gostar de crianças”, porque, convenhamos – primeiramente, há de se considerar que a forma com a qual lidamos com a criança é extrema: ou beiramos à violência e o descaso, ou centralizamos nela todas as nossas fragilidades, nos tornando reféns de comportamentos viciosos delas, que são reflexo dos nossos.
Segundo, é um ato que envolve uma parte de nossa formação, que raramente vivemos. Então não é justo exigir que se dê aquilo que não se recebeu. Mas somos obrigados, sim, a nos amar. Porque ninguém vive senão nessa condição, a do autoamor. E nos amar envolve amar às nossas crianças interiores, que nos conduziram até o presente momento, o da vida adulta.
Você está vivo, hoje, porque sua criança resistiu. Ela driblou todas as doenças, as vulnerabilidades físicas e espirituais que foram colocadas à sua prova. Ela cresceu, e crescer não é para qualquer um. Ela venceu em algo e, graças à sua vitória, você está aqui hoje.
A CRIANÇA NA UMBANDA
Poderíamos discorrer sobre vários aspectos de Ibeji, e tudo o mais que já infla a internet. Mas, assim como em textos prévios, a intenção é sempre trazer algo além daquilo que se espera de “textos doutrinários” de Umbanda.
A criança cultuada em Umbanda (e aqui me refiro tão somente à linhagem a qual represento) é espírito. É ser humano. É gente que viveu e morreu em tenra idade na terra. Logo, é espírito com nome e sobrenome.
Mas, assim como todas as demais linhas, a criança não se encerra numa representação alegórica ou caricatural. Ela carrega um algo mágico. Não sendo encantado, não deixa de ser uma manifestação “encantadora”.
A criança, em Umbanda, destrava o emocional do médium, do consulente, do ambiente. Ela desenterra um mar de emoções, expondo todas as feridas e as coloca em processo de cura, sem que seja notado, muitas vezes.
A criança chora, e chora pra lavar o peito do seu cavalo, do consulente. Porque o adulto não consegue chorar, pois muitas vezes ele nem se lembra do motivo de suas frustrações e traumas reprimidos.
Em Umbanda, louvamos e cultuamos as crianças, e as tememos. Porque o poder de sua inocência é tamanho, que chega a ser capaz de desfazer os mais complexos trabalhos e feitiços, com facilidade e maestria.
Porque ela transcende a lógica e subverte sistemas pelo simples fato de sonhar, do brincar. O seu faz de conta transforma realidades e cria novos paradigmas.
O mitã, a criança tupi, já nasce sabendo de si. É ela quem escolhe seu nome, antes de nascer, e é este nome revelado que traça na terra seu destino, sua força e sua missão.
Assim como a criança africana, ela carrega em si o destino de sua família e de suas gerações. A criança, nessas culturas, é protagonista, e por isso deve ser protegida e assessorada.
Louvamos a criança, mas não através do mimo e futilidades. Pois comportamentos viciosos também corrompem a criança. E corromper uma criança, pela ótica tupi, é o mesmo que amaldiçoar toda a sua vida adulta. Ela se perde, de maneira irreversível. Louvamos a criança a protegendo, mas também a fortalecendo, para que cresça com discernimento, responsabilidade e senso ético.
A criança em Umbanda fala muito, mas não se comunica efetivamente pela palavra. Em Umbanda, a criança trabalha pelo gestual, pelo brincar. As palavras são limitadas e limitantes perante a grandeza de seu poder.
A criança suscita em nós um poder de reconexão com a Criação. Ela diz “meu pai” ou “minha mãe” quando se refere a potências criadoras do universo. E, enquanto fruto da criação, tem nos braços amorosos dos pais o caminho livre e aberto. Por isso dizemos que a criança chega aonde as demais entidades não conseguem chegar.
Cosme e Damião, no sincretismo (e aqui Doum figurando enquanto um aspecto mítico ou lendário popular), traz em si a face de cura dessa linha milagrosa. Não poderia ser mais coerente, pois a criança representa em si a luta pela sobrevivência física.
As altas taxas de mortalidade na primeira infância colocam a criança o tempo todo a provas de sobrevivência. A vulnerabilidade é física, mas também espiritual. Ela está suscetível a ataques espirituais diversos, devido à sua conexão ao mundo imaterial até que adquira mais vivência na terra. E esta não é uma ideia tão somente ‘Kardecista’, é um conceito tupi e também de várias culturas africanas.
Quando louvamos a criança, louvamos não apenas nossa ancestralidade. Mas cultuamos nossa memória infantil. Cultuamos nossa própria força, e trazemos à luz nossas fragilidades e fortalezas esquecidas.
Nos fortalecemos nessa força inicial que trazemos no impulso de nosso nascimento a cada vez que cultuamos esta linha e louvamos nossas crianças.
Saravá as crianças de Umbanda.
Viva Cosme, Damião e Doum!
C.C.T Aline Camargo